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O teatro que desperta as águias

novembro 13, 2007

Como transformar um sonho em realidade? Como livrar a águia de sua ilusão de galinha e fazê-la voar, sentir a vertigem da própria liberdade?

Há uma parábola sobre um pássaro que vivera toda a sua vida entre as galinhas, agindo como elas, mas infeliz com suas grandes e inúteis asas. Até que, certo dia, um naturalista apareceu no galinheiro, percebeu o engano e o levou para o alto da montanha. Ali, vislumbrando o horizonte, sentindo o vento nas penas, descobriu sua natureza de águia e voou, misturando-se à imensidão azul do céu. Tal qual o naturalista da parábola, Auan Perez transformou a vida de seus alunos do curso de teatro. Mais do que isso, transformou a sua própria vida.

Auan estava cursando Letras quando, na metade de 2003, foi selecionado para participar do projeto Escola da Família (iniciativa do governo de Geraldo Alckmin, graças à qual alunos de faculdades particulares receberiam bolsas de estudos e, em contrapartida, trabalhariam em projetos voluntários voltados para a comunidade).

Ele escolheu o Colégio Maria José, no Bixiga, a escola em que estudara nos tempos de infância e adolescência, e iniciou um curso de teatro e dança para crianças e adultos, nos finais de semana – tempo reservado para a Escola da Família. E, entre aqueles jovens carentes da região, logo formou uma turma de talentosos atores, que surpreenderiam ainda todos os que os assistissem.

O trabalho exigia extrema dedicação. Além da iniciáção ao teatro, era preciso incutir organização e disciplina em crianças que mal dispunham das condições básicas de vida em suas casas. Também não havia infra-estrutura adequada, o que significava para o professor tirar do próprio bolso – contando com a ajuda dos próprios alunos e de seus pais – os recursos que fossem necessários para os exercícios e montagens das peças.

Entre sacrifícios e aulas intensivas, os ‘candidatos a atores’ se viram tomados de paixão pelo teatro. Boa parte da comunidade foi envolvida no projeto, transformando toda a rotina do lugar, na medida em que dava aos participantes novas perspectivas de vida e de futuro – algo antes impensável. Entretanto, Auan foi transferido pela coordenação do projeto para o colégio Rodrigues Alves, na Avenida Paulista, já em 2004. Para não abandonar os seus alunos, insistiu em que eles pudessem frequentar essa outra escolna nos fins de semana. E foi ali que as portas começaram a se abrir para todos eles.

O curso de teatro da tradicional escola paulistana tornou-se um modelo para todos os outros projetos contemplados pela Escola da Família. Em dada ocasião, entraram em contato com o professor, perguntando-lhe se tinha algo pronto que pudesse apresentar numa Conferência Estadual de Educação. Não havia, mas a resposta foi sim, e ele encarou o desafio. Em uma semana, Auan e sua trupe prepararam um espetáculo. Os alunos visitaram a TV Cultura e foram fotografados. Como nem todos puderam participar, foi criado para a ocasião um grupo de palhaços – eram os clowns, a semente do futuro ‘show de palhaços’.

Mais tarde, a visita do governador Geraldo Alckmin ao colégio impôs um novo desafio. Sem tempo hábil para criar um espetáculo e ensaiar, o grupo foi obrigado a improvisar no palco. E o talento dos meninos e meninas, indiscutível, pegou de surpresa os emocionados espectadores.

A turma formou-se no final daquele ano com uma apresentação vibrante para todos os alunos do Colégio Rodrigues Alves. Pelo trabalho que desenvolvera ali, Auan ganhou o prêmio do Programa de Educação Voluntária, e não pretendia parar por aí. Em sua cabeça, havia novos planos, novos vôos a serem alçados. Mas, como já estava formado, não tinha mais direito à bolsa de estudos, e a diretoria da escola o dispensou.

Foi nesse momento que o professor tomou uma decisão radical: prosseguir com o trabalho, por conta própria, no Colégio Caetano de Campos, na Aclimação. Foi um tempo difícil, durante os quais teve de se acostumar a privações como trocar almoço e janta por um lanche, ou o ônibus por uma boa caminhada. Ainda assim, a determinação, aliada à necessidade que os jovens alunos tinham do palco, o ajudou a formar outras duas turmas: a do curso intermediário, de leitura dramática, para os alunos que haviam concluído o primeiro nível, no ano anterior, e a do novo curso básico.

E os projetos se multiplicaram: estão sendo preparados os espetáculos “O aniversário do Urso” (em comemoração ao aniversário de Walt Disney), “A garota do serial killer” (com os personagens do cartunista Horton Novak, considerado por alguns o novo Maurício de Souza), o trabalho de conclusão do curso intermediário de teatro, com um texto de Nicolai Gogol e o “Espetáculo de Palhaços” (para ser apresentado nas praças da cidade, levando o teatro àqueles que nunca tinham tido a possibilidade de assistir a um evento do gênero.

O bem sucedido Tearte, o grupo formado por Auan Perez, não está apenas revelando talentos. Ele também ajuda suas ‘águias’ a alçarem vôos cada vez maiores. É o caso de uma das integrantes, escolhida para integrar o elenco da montagem de “O diário de Anne Frank” – como protagonista

 

Texto: Juliana Leite (publicado no Jornal da Praça in Revista em maio de 2005)

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